Jornal da Tarde, 12 de julho de 1976, Edição de Esportes, página 6
O jogo dos sonhos
E aqueles
botões deslizando sobre a mesa, com toda a fantasia da infância.
Texto de Sérgio Baklanos
Feitiço certamente se sentiria constrangido no time
do Alfaia. Pequeno, feio e pardo, ele quase desaparecia entre os negros e
luzidios zagueiros ou entre os imponentes jogadores de meio-campo, em pose
marcial, esperando a partida começar. Mas bastava dar a saída para que tudo se
modificasse. Aquele botão desprezível, arrancado de um casaco qualquer, num
momento de descuido de seu dono, transformava-se no atacante mais perfeito do
futebol de mesa.
Era inútil calcular a colocação do goleiro, pois
nos seus chutes de casquinhaFeitiço aplicava tanto efeito, que a
bolinha de cortiça passava zombeteiramente raspando uma das extremidades do
goleiro — uma caixa de fósforos reforçada com um peso de chumbo e recoberta por papel de
seda
A carreira de Feitiço faria dele, mais tarde, um
personagem importante, a ponto de influir até na vida conjugal de seu dono, o
ex-ator de teatro e jornalista Cláudio Pucci, de 28 anos bem vividos, pois Dona
Cecília, sua esposa, chegaria a sequestrar o goleador, impondo como resgate as
vontades que desejava satisfazer.
Era também uma maneira de desfalcar o time do
marido, para ter alguma possibilidade de vencer algum adversário com um
centroavante daqueles. Nem ela e muito menos os dois filhos conseguiam derrotar
Cláudio, praticante do esporte há 24 anos e invicto nos últimos 9, a quem Chico
Buarque de Holanda, alegando estar fora de forma, se recusou a enfrentar.
Bem que a família Pucci poderia estar jogando num
clube de verdade, acompanhada por uma multidão de deslumbrados torcedores.
Faltou pouco para que isso acontecesse. Cláudio, eleito em 1974, por
unanimidade, presidente da Felibolu (Federação Livre de Botobol e Outras
Ludicidades) conseguiu uma filiação oficial, escreveu os regulamentos e chegou
até a editar um livro de 55 páginas sobre o assunto.
Mas, como sempre, quando o jogo começou a se tornar
oficial e sério, repentinamente tudo perdeu a graça. A Federação foi desfeita,
sem sequer chegar a organizar o seu primeiro grande torneio. Passados esses
momentos de desencanto, Cláudio voltaria a jogar as suas partidas nas tardes de
sábado, no consultório de seu irmão Gilberto, um conhecido pediatra. Até hoje,
ele diverte-se com Sérgio, um fanático botonista que, nas jogadas mais
importantes, é obrigado a parar, tomando comprimidos para evitar a taquicardia.
Agora não é mais possível acompanhar os movimentos
de Feitiço, hoje velho e ultrapassado e nem por isso aproveitado num paletó
qualquer. Em homenagem ao seu passado, vive suas memórias de grande goleador ao
lado de outros gloriosos botões, guardados num porta-joias.
O tempo, é claro, acabou mudando até o futebol de
mesa. Mas isso não impede que Cláudio sinta o mesmo orgulho de anos anteriores,
ao olhar para o sofisticado time de acrílico, com a letra A — em estilo art-nouveau — gravada em vermelho em cada botão.
Com ele, poderá estar gente muito importante, como
o teatrólogo e ator Gianfrancesco Guarnieri, Antônio Fagundes, galã da
novela O Machão ou prefeito de Saramandaia, Lauro
César Muniz, da novela O Casarão, ou o jornalista Antônio Carlos
Coutinho, do Jornal da Tarde.
Como a vocação de Cláudio para o esporte se
manifestou aos quatro anos de idade na alfaiataria do pai — um verdadeiro celeiro de craques — , ele batizou um de seus melhores times de Alfaia — um tipo de tecido e, ao mesmo tempo, uma homenagem incompleta à profissão de seu
inspirador e principal fornecedor.
Perto da Fiorentina, porém, o Alfaia ficaria
humilhado. Nos botões lilases e brancos, com o escudo do clube, estão gravados
os nomes dos campeões italianos do ano passado. O goleiro, em vez de uma caixa
de fósforos qualquer, é um sofisticado paralelepípedo de acrílico, com o número
1 desenhado na “camisa”. Um time que custou quinhentos cruzeiros ao seu dono.
Um dia destes, Cláudio ainda fará uma visita ao
Alto da Lapa, para desafiar os campeões que não perdem há três anos. Mas, comparados
com ele, os rapazes do Elias Howe Futebol de Mesa não passam de simples
principiantes. Imagine que eles estão querendo formar uma nova federação e
ainda não aprenderam que o verdadeiro prazer do jogo está na sua descontração,
que provoca lembranças dos doces anos da infância, quando os meninos faziam as
regras e, respeitando o acordo de cavalheiros, nem ousavam discutir a
legalidade delas.
Mas, de certa maneira, os rapazes da Lapa — universitários na maioria — praticam o esporte por razões mais elevadas. Os engenheiros e dentistas
empregam o seu conhecimento técnico para aperfeiçoar cada vez mais os seus botões. Eles
levam a vantagem de já terem ingressado na era da tecnologia, tornando o
futebol de mesa muito mais intelectualizado. E, no momento, debatem-se num
terrível dilema.
Há duas correntes filosóficas muito fortes. Uma
delas prefere o botão com a borda mais baixa entre as duas superfícies, por
favorecer o controle da bola e melhorar os arremates de curta distância. A
outra defende as vantagens da borda alta, que torna os chutes de longa
distância mais fortes e certeiros e que, por exigir maior habilidade na
condução da bola, aprimora a técnica dos jogadores e, por isso, está em ligeira
maioria.
E, nesta verdadeira corrida armamentista, há também
truques menores, como passar uma mistura de parafina e pó de acrílico sob o
botão, tornando o seu pique muito mais rápido.
O sustentáculo do Elias Howe — nome do inventor da máquina de costura e do clube, numa irônica analogia
ao principal objeto do jogo — são as famílias Marchini e Pasqualin. Esta última,
principalmente, parece que nasceu campeã: Antônio Carlos, 25 anos e estudante de Engenharia, já conquistou
três títulos
alternados e seu irmão Eraldo, engenheiro metalúrgico, é tricampeão.
Eles é que entusiasmam os demais praticantes, como
Adalberto Zicarelli, presidente do clube e também engenheiro, como Ricardo
Basso, ou o químico Paulo Marino e o dentista José Roberto Primo, que emprestou
os fundos de sua casa, onde foi montada a sede do clube, na Rua Barão de
Itaúna, 351.
O Elias Howe está precisando de novos sócios, que,
com a contribuição mensal de trinta cruzeiros, garantirão a sua expansão. O
plano é organizar o II Torneio Paulistano de Futebol de Mesa para maiores de
quinze anos. O limite mínimo de idade é para diminuir o número de inscrições. O
supermercado Jumbo resolveu fazer um torneio sem fixar as idades, e os garotos
lotaram a sua imensa área.
Com o
desaparecimento do Carnot F.M. do Pari, devido à morte de seu incentivador,
ficou difícil arranjar novos adversários. De vez em quando, o Elias Howe faz
uma excursão a Santos para enfrentar os times da liga local, mas isto ainda não
satisfaz. E como um jogador só abandona o futebol de mesa por falta de
adversários, é melhor não correr riscos. Enfim, seria uma pena extinguir um
esporte que, com um pouco de fantasia e imaginação, chega a ser igualzinho ao
futebol.
As regras
Não há literatura específica nem documentos
históricos, mas não seria errado supor que o jogo de botões foi inventado no
dia em que um garoto qualquer, por não poder jogar futebol na rua, fez os
contornos de um campo no assoalho de sua casa e, juntando vinte botões,
resolveu reconstituir uma partida.
Uma das únicas entidades oficiais que os jogadores
conhecem é a Federação Paulista de Futebol de Mesa, fundada em 1962 para, cinco
anos depois, não se ter mais referências dela. No tempo das grandes disputas
eleitorais, os políticos — como fez José Bonifácio Coutinho Nogueira em 1966 — patrocinavam os torneios do jornal A Gazeta Esportiva, para
conquistar alguns votos a mais.
Atualmente, o regulamento organizado pelos
dirigentes do Elias Howe é o mais respeitado. Composto por 19 regras e 49
artigos, ele estabelece que, em vez de jogadas alternadas, cada jogador ou
técnico tem direito a carregar a bola o quanto puder, desde que respeite o
limite de três toques por botão.
É proibido também mudar a colocação dos botões,
enquanto a bola estiver em jogo. Mas, em qualquer interrupção, o jogador poderá
distribuir estrategicamente seu time na mesa, o que dá maior variação tática ao
jogo, mas o jogador terá o cuidado de observar a distância regulamentar de
setenta milímetros entre os botões de seu próprio time e os do adversário
também.
O goleiro, que mede 70×35×15, deverá pesar no
máximo 75 gramas e ficará fixo no gol. As metas devem ser de madeira ou arame
revestido, respeitando as medidas de 125 milímetros de largura e 50 de altura.
A bola, de feltro ou de lã, deverá pesar entre 1,5 e 3 gramas.
Assim, se um botão — impulsionado pela ficha ou batedeira — errar a bola e atingir um adversário, será cobrada uma falta contra o
infrator. Os jogadores (ou técnicos) poderão sofrer faltas técnicas caso se
dirijam ao adversário desnecessariamente, se comentarem desnecessariamente a
jogada, se perguntarem o tempo de jogo (o relógio é escondido dos
participantes), se reclamarem do juiz ou se fizerem cera.
Cada
técnico tem direito a cinco segundos para completar as jogadas e, uma inovação
deste regulamento, se a bolinha cair no orifício dos botões (os modernos, por
economia de material, não possuem o disco central), a jogada prosseguirá
normalmente, observados, contudo, os três toques regulamentares por botão. À
exceção do impedimento, todas as demais regras são análogas, na medida do
possível, ao futebol de campo.
Os vendedores
Há somente uma casa especializada no jogo de
botões: a Sport Mesa, na Rua 24 de Maio, 116, loja 33. Seu proprietário, Luiz
Gonçalves da Silva, fabrica seus próprios botões de acrílico, de forma
arredondada, em preços que variam de 120 a 600 cruzeiros.
O Az de Ouro, na Rua Nova Barão, 38, e na Quinze de
Novembro, 53, possui uma grande variedade de botões. Os de plástico, os mais
baratos, custam quinze cruzeiros o jogo, com metas e goleiro móvel. Os
semioficiais de acrílico (42 milímetros) custam 75 cruzeiros; os oficiais (48
milímetros), 140 cruzeiros.
As mesas também variam em preço e medidas: as de
88×125 centímetros, em compensado, custam 150 cruzeiros; as de 60×90
centímetros, em aglomerado (como pedem as regras), 420 cruzeiros; as de 90×150,
com cavaletes e em aglomerado, 1.200 cruzeiros; e as oficiais, de 110×190, com
cavaletes, 1.350 cruzeiros.
A loja
Esportes Moura (Líbero Badaró, 110) oferece os botões tipo tampa de relógio a
75 cruzeiros o jogo, mais 35 cruzeiros com os goleiros e duas bolinhas de
feltro. Os botões de plástico da Estrela custam trinta cruzeiros por time, e o
gol, dez cruzeiros. A mesa de madeira compensada custa 75 cruzeiros, com um
acréscimo de 55 cruzeiros para os cavaletes. Para comparar os preços, que
variam com a qualidade do material, os interessados poderão consultar também
Esportes Magalhães Padilha (Líbero Badaró, 122), Esportes Caram (25 de Março,
767) ou Casa do Esportista (Miguel Couto, 31).
Reproduzido e revisado por
Alexandre Giesbrecht em 9 de abril de 2018.