G. E. BLACK POWER DO IPIRANGA


O Grêmio Esportivo Black Power do Ipiranga é um dos times de várzea tradicionais da Zona Sul. Além de trazer no nome uma forte referência aos movimentos de resistência dos negros nos Estados Unidos, relacionado principalmente à estética apresentada pelos integrantes do time nos anos 1970 - maioria negra e com grandes cabeleiras estilo black power - o time também leva o nome do bairro onde surgiu e moram seus representantes até os dias de hoje, o bairro do Ipiranga.

Segue abaixo a história do clube, conforme pode ser lido em seu perfil no Facebook:
Branca fundou com amigos o "Black do Ipiranga" na véspera de Natal de 1972. O time nunca teve campo próprio, o que não quer dizer nunca tenham se sentido em casa. As glórias vieram sempre em terrão alheio. E são muitas. Além da longevidade, coisa raríssima numa modalidade cada vez mais sem espaço entre o amontoado de obras e da verticalização sem fim da capital paulista, o Black está cheio de taças. Alguns dos principais títulos foram a 1º Copa El Tigre, em 1975, a Copa Adhemar de Barros Filho, em 1980, e o Torneio Campeão dos Campeões, em 1984. Também foram bicampeões da Copa Leão do Ipiranga, além de honrosos terceiros e quartos colocados na Copa Kaiser nos anos 1990.
Em sua estreia e nos anos que seguiram, o time principal do Black era totalmente negro. Do goleiro ao ponta-esquerda, todos jogavam como mandava o figurino e o nome criado para a equipe: cabelos crespos muito bem ajeitados para o jogo e para a festa. Mas Branca, o faz-tudo, diz que sempre houve brancos no plantel. "Os 11 titulares eram escolhidos pela qualidade técnica dos jogadores. No time B havia já alguns jogadores brancos desde o nosso início", diz. "Aliás, quem deu o nome Black Power foi um cara branco, não foi um negro. Ele nos mostrou o cabelo dos caras nos Estados Unidos, falou do movimento por lá e aí abandonamos os nomes anteriores, de Cartola e Águia Negra."
Branca, que fez a vida como administrador de empresas, nega qualquer tipo de partidarismo ou aproximação política no grupo. Nunca houve discursos nem reuniões com pautas abertamente políticas ou contra a repressão contra a população negra. O foco foi sempre o empoderamento. "Nunca houve intenção de seguir os Panteras Negras, por exemplo. Mas todo mundo já tinha cabelo black power, pela influência que tinha na época", conta.
Benedito Roberto Rodrigues, o Zás-Tras, é outro fundador do time e foi, segundo ele, clássico cabeça-de-área que usa a camisa 5. Hoje com 63 anos, ele confirma a ideia inicial, mais estética e inclusiva do que abertamente anti-racista. A influência era menor dos punhos cerrados dos atletas Tommie Smith e John Carlos, que mostraram ao mundo o black power nos Jogos Olímpicos do México, em 1968, e bem mais irrigado pelos movimentos culturais. "Era a época do James Brown. E todos nos caras nos Estados Unidos eram black power. A gente já tinha o cabelo black aqui no Ipiranga porque era moda", conta Zás-Tras, para depois me pegar pelo braço para exibir, cheio de si, um retrato de Orestes Quércia, então governador de São Paulo, posando com a equipe do Black em 1974.
Hoje roupeiro do Black, Zás-Tras conta, entre um cigarro e outro, que a ideologia do Black era mostrar o 'Poder' em campo. "Era 100% negro mesmo. A nossa 'negrada' surgia com potência mesmo. O Ipiranga era só negros. Então a galera partia com vários ônibus, vários carros para o nosso jogo. O 'Poder' era jogar, vencer e voltar feliz da vida com as taças, os troféus, as medalhas e os baratos, entendeu?", diz e ex-camisa 5, que abandonou o futebol antes da virada de 1999 para 2000. Segundo ele, porque "acreditava que o mundo ia acabar".
Branca faz o tipo fechadão que calcula o que vai falar, mas com uns minutos de papo acaba se soltando. "Já ouvi de jogador profissional que raspava o cabelo na Europa para não mostrar negritude. É mó mancada. Não pode. Porque o racismo segue, né? Os caras ainda jogam banana no gramado por lá", diz. 
Racismo arraigado no nosso futebol, claro. "Treinador negro não tem chance no Brasil. Olha aí o que deu para o Andrade, para o Cristóvão Borges. O Luxemburgo consegue trabalhar porque estica o cabelo. Mas não é só no futebol. [O repórter e apresentador] Abel Neto só tapa buraco na Globo. Quanto tempo ele trabalha lá e não tem chance. Será que é isso mesmo? Passam uns moleques nada a ver na frente dele e nada? Esse Ivan Moré… Mas, as coisas estão mudando."
Para Branca, Pelé "não fez nada pela raça" mesmo sendo "mais famoso que Jesus Cristo", o que ele irrompeu com pedido de perdão a Deus pela blasfêmia. A admiração esportiva pelo empoderamento negro vai para outras modalidades: Michael Jordan, Serena Williams e Lewis Hamilton, o queridinho de Branca. "Esse cara é foda. Só ele sabe o quanto sofre na Fórmula 1. Imagina o quanto é  difícil... É um circo aquilo tudo. É muito dinheiro rolando, muito poder, e eles precisam engolir um 'negro voador'. Gostaria que ele ganhasse todas as provas, que fosse campeão de tudo todos os anos. O Hamilton entra na curva e sabe que pode morrer, que precisa ser ousado, que precisa mostrar mais. Mas está aí: o nome dele está na história."
O orgulho Black é fácil de brotar no Ipiranga. "Sou são-paulino, mas meu primeiro time é o Black Power do Ipiranga. Primeiro o Black depois o São Paulo, entendeu?", conta o ex-lateral-direito Vantuir da Silva Sant'Anna, 44. "Dois enes aí, negô? É sant-anna, com apóstrofe!", confirma o agora segurança de supermercado, bem em frente à ex-sede do Black, na Rua Vergueiro, altura do número 7673, no Ipiranga. "Me recordo quando era pivetinho e saía seis ou sete ônibus daqui para o jogo do Desafio ao Galo. No domingo de manhã no Canal 7, na Rede Record! Dá para acreditar? Era muito bom, todo mundo junto. Mulheres dos jogadores, as senhoras do bairro, a criançada. Era nosso programa de domingo aqui", lembra.
"Nunca fui o cara habilidoso, aquele cara top. Mas tinha pegada, simplicidade, humildade. Nunca gostei de perder, não", conta, batendo no peito. Dois tendões rompidos e uns quilinhos a mais e Vantuir está limado dos veteranos. "Estava voando baixo até 17 anos atrás. Mas comecei a fumar e beber muito cedo. Aí não é certo para um atleta. Só Ronaldo Fenômeno consegue", diz.
Como é de se prever, o escrete negro era provocado nas quatro linhas sem a menor cerimônia. "Diziam muito para gente: 'esses negrinhos são chatos'. Pegamos vários apelidos, mas levamos sempre de boa. A coisa era jogar muita bola", diz Branca. Mas a tradicional camaradagem da várzea também tinha lá seus momentos mais tensos. "O Black sempre foi muito forte no respeito. Se tem arranca rabo se resolve dentro do campo. Acabou o jogo, acabou a treta. Mas vou falar para você... Era aquilo de 'quem pode mais chora menos'. Passaram muitas pessoas no Black. Tinha muita gente aqui, entendeu? Não colávamos para brigar, mas tinha uns caras muito bom na mão (risos). Agora você pega um louco qualquer e  já quer sacar o revólver. Antes era na mão mesmo", conta Vantuir.
Zás-Tras lembra que a resposta vinha na bola. "O racismo ainda é vivo, mas hoje isso está mais calmo na várzea. Antes ouvíamos muito 'bate nesse neguinho, pega esse neguinho'. Mas aí o chicote estralava para eles. O Black fazia quatro, fazia cinco gols nos caras e saía briga, dava confusão", diz. "Hoje em dia a várzea está um esporte legal. É na paz."
Com o passar do tempo, o clube foi ficando cada vez na mão de Branca, que treina todas as categorias há mais de três décadas e preside o clube desde sempre. "Sou meio ditador ", ri. "Sou [Vicente] Matheus, [Paulo] Nobre, Eurico Miranda… Time tem de ter dono ou não anda. Gostaria de deixar para cada um fazer o seu, mas as pessoas têm formas diferentes de se dedicar. O Andrés [Sanchez] fez tudo pelo Corinthians, mas agora não dá em nada. O Mustafá [Contursi] afundou o Palmeiras e agora o Nobre reergueu. O [Roberto] Dinamite falou, falou e não fez nada no Vasco", discursa. "A gente põe o coração acima de qualquer coisa, mas aí preciso passar para a frente porque não sou eterno. Muita gente já morreu, mas a entidade está acima de todos aqui."
Os grandes rivais do Black, nas palavras de Branca, são os "times de comunidade", que dependem de dinheiro dos próprios atletas ou de pequenos patrocinadores. Ele enumera três deles: Botafogo de Guaianazes, Ajax da Vila Rica, Martinica do Campo Limpo. "O Martinica nunca consegui vencer em 44 anos. Uma vez estava 5 x 1 e faltando 20 minutos eles empataram. São times tradicionais, do cara que tira o dinheiro de dentro de casa e briga com a mulher por causa disso. De caras que levam a roupa do time para lavar em casa. Tem os times que aparecem, viram meteoros e não duram", conta. O jogo memorável, para Branca e Zás-Tras, foi o dia em que o Black foi Corinthians com um Pacaembu repleto nas arquibancadas. "Jogamos contra o Botafogo de Guaianazes no Pacaembu com 25 mil corintianos gritando 'Black! Black! Black!'. Foi louco. Fizemos um gol e o moleque nosso foi no meio da Gaviões", lembra Branca. Era preliminar de Corinthians x Botafogo-RJ, o Black foi Timão, na saudosa década de 1990. "Jogamos de branco, mas com o nosso uniforme. Aquilo foi muito bonito, hein?", lembra Zás-Tras.
Máquina de fazer atletas
Quem foi o melhor jogador que passou pelas quebradas do Ipiranga não é ponto pacífico entre ex-jogadores e dirigentes. "Tivemos Zé Sérgio, Assis, do Fluminense, Lidu, do Guadalajara... Tem o menino que esteve na Alemanha, o Robson Ponte. Aí tem o Saad, Paulinho, Claudinho, Edu, que jogou no Palmeiras. Passou muita gente boa aqui", diz Zás-Tras.  
De fato, o Black tem muita história na formação de atletas. Ruy Ramos, brasileiro cabeludão que fez grande sucesso no futebol japonês e defendeu o Japão nos anos 1990, nasceu do terrão do Ipiranga. Assis, parceiro de Washington no histórico "Casal 20" do Fluminense, é outro que calçou as chuteiras por lá. Zé Sérgio, ponta-esquerda do São Paulo defendeu o Black por mais de 20 anos, vencendo inúmeros troféus de melhor em campo no tradicional Desafio Ao Galo.
"Zé Sérgio, o meia-esquerda, nosso eterno camisa 11 era brincadeira. Driblava um, driblava dois. Jogava por baixo das pernas, dava touca na maior facilidade. Era liso, leve e rápido. Ele foi o top, mano. Era o melhor mesmo", conta Vantuir, com um sorrisão no rosto.
Além da lista de jogadores que nasceram e foram criados no Black, outros profissionais reconhecidos passaram por lá esporadicamente. Os ex-corintianos Dinei e Ataliba, Benazzi, ex-jogador e treinador da Portuguesa, Dodô, ex-São Paulo e Botafogo, e o icônico Serginho Chulapa também vestiram o uniforme azul, preto e branco do Black.
Não ganhamos nada e, muitas vezes, temos de tirar do bolso. Mas jogar para o Black é inexplicável, né, mano? 
Mesmo com o histórico enorme, a ajuda financeira é pouca. Sem patrocínio fixo, o Black conseguiu por cinco anos manter uma escolinha de futebol que era tocada por Nélson Mário Corrêa, o Vitamina, irmão de Branca. Com a morte dele, o projeto nunca mais funcionou. Por falta de espaço ou uma sede própria mais espaçosa, alguns dos troféus ganhos acabam sendo doados"aos dirigentes e atletas que se destacaram. "Até dois anos atrás estava muita coisa do Black aqui neste bar. Era a sede, tinha os churrascos, reunia o pessoal por aqui. Agora o Branca arranjou uma namorada e faz tudo no bar dele", conta a comerciante Lídia Maria Corrêa, 65, a irmã do fundador faz-tudo da equipe, no bar-sede.
A esperança é continuar na mesma toada e focar na molecada. "Não posso reclamar. Não tenho estrutura, mas tenho matéria-prima. Tem muita gente que tem tudo bonito, lindo e não tem jogador. Desses 80 que cuido, 15 a 20 já nasceram natos pro futebol. Dois ou três de cada categoria são brilhantes. E os outros você molda, acredita. Os mais dedicados e táticos acabam indo mais longe. Mas muito do que eles querem fazer", conta Branca.
Dia de jogo, Branca chefão
Na manhã do sábado do dia 18, sol de rachar coco na Arena Oi Heliópolis, maior favela de São Paulo. Lá estava o Black em campo. "Ow, quase que fiz gol de cabeça com essa altura minha aqui", fala Thomas Wallace, 17 anos. "Cala a boca", responde sem paciência, um companheiro de time. Pergunto como é ser treinado pelo rigoroso professor Branca. "Vou falar para você que jogar para o Branca é foda. Ele come a orelha, mas a gente tá aqui porque ama o Black mesmo. Tá aqui quem gosta mesmo. Não ganhamos nada e, muitas vezes, temos de tirar do bolso. Mas jogar para o Black é inexplicável, né, mano? Só quem está dentro do campo sabe", conta Thomas, autor do gol de pênalti que deu a vitória o Black sobre o Real Baixada F.C., rival do Ipiranga, naquela manhã.
Thomas, hoje dono da camisa 11, chegou por acidente para comandar o ataque do sub-17. O irmão Caio, também varzeano, foi quem fez o convite. A ideia inicial era que ele assumisse a lateral. "Nisso sobrou uma vaga de atacante para mim. Na primeira bola que sobrou, fiz o gol. O Branca viu que tinha senso de atacante e estou aqui há dois anos", lembra. E se não fosse o Black, o que você estaria fazendo num sábado pela manhã? "Dormindo em casa. Talvez na casa da namorada, não sei… Jogando bola que não estaria."
Além de bancar o paizão para os 80 moleques (a grande maioria de comunidades carentes), Branca tem ainda uma filha, um filho e cinco netos biológicos. "A porta é muito estreita no futebol profissional. A formação moral, de ter limites, de respeitar, de saber viver com adversidades, esses todos podem passar. A porta é larga". Quase 45 anos depois e o futebol de várzea ainda tira a molecada de casa. Não tem PlayStation, pipa, sarrada ou que for que segure a molecadinha do Black. É que o Branca tem a manha.

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